Afinal, dentro de uma certeza tão absoluta, quais são os motivos que
conduzem a humanidade ao medo, aliás, ao pavor, através do episódio da morte?
Estaríamos focados, exclusivamente, ao fato que provoca o desenlace dos
vínculos materiais? Ou a ação de morrer, simplesmente, evocaria a condensação
simbólica de um estado rotineiro, porém, imperceptível, a um estado escolhido
por cada um? Fenomenologicamente falando, a morte é o anúncio público da
ausência de alguém, o fim biológico e o prenúncio para a inexistência. Há todo
um lamentar, carregado de pesar e de uma desconfiança em relação ao sentido
daquilo que foi e do que será a trajetória pela vida. Além disso, anuncia-se,
de maneira geral, a ansiedade antecipatória em relação a uma próxima data, de
um próximo sujeito e de uma repetição permanente dessa convivência. Uma íntima
e vivaz relação que não se interrompe, jamais, por toda história antropológica
do homem.
Não seria a morte, então, um mero acontecimento, com data, horário e
situação, supostamente, indeterminados, marcando o término de uma jornada.
Talvez esse seja o produto final, consequente, de um turbilhão de
acontecimentos provocados pela nossa própria liberdade, condicional, que nos
faz perceber, sentir, pensar e reagir ao mundo, exatamente de acordo com nosso
estágio evolutivo. Refiro-me às atitudes, predominantes, adotadas pelas pessoas
e observadas em seus modelos operantes de condução do próprio estado de vida.
A morte marca presença no instante do arrependimento, onde a culpa e o
encarceramento ao passado se estabelecem. A vida encontra-se na reparação,
humilde, que gera o benefício a todos os envolvidos e impulsiona o ser a
continua sua caminhada. Pode ser vista na permissividade dominante que faz com
quem esteja a sua volta invada limites, domine e controle, aprisionando o outro
em sua visão de incapacidade e de insegurança, ao invés de adotar o espírito
ativo e criador, contribuindo para os processos que lhe dizem respeito.
Igualmente, morrer, passa pela ordem das fantasias e dos devaneios, quando se
delega, aleatoriamente, a alguém, a alguma situação, ou a Deus, uma soberania
intransferível, no sentido de sermos únicos responsáveis por aquilo que
conduzimos e pelas escolhas que fazemos.
“Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o
mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exacto do facto
de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal,
evitando que lhe atribuamos uma idéia de duração eterna e poupando-nos o pesar
da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada
haver de temível no facto de não viver. É pois, tolo quem afirma temer a morte,
não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la.
Tolice afligir-se com a espera da morte, pois trata-se de algo que, uma vez
vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é
nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não
existimos mais.
Não há morte, então, nem para os vivos nem para os mortos, porquanto
para uns não existe, e os outros não existem mais. Mas o vulgo, ou a teme como
o pior dos males, ou a deseja como termo para os males da vida. O sábio não
teme a morte, a vida não lhe é nenhum fardo, nem ele crê que seja um mal não
mais existir. Assim como não é a abundância dos manjares, mas a sua qualidade,
que nos delicia, assim também não é a longa duração da vida, mas seu encanto,
que nos apraz. Quanto aos que aconselham os jovens a viverem bem, e os velhos a
bem morrerem, são uns ingénuos, não apenas porque a vida tem encanto mesmo para
os velhos, como porque o cuidado de viver bem e o de bem morrer constituem um
único e mesmo cuidado.”
- Epicuro, in “A Conduta na Vida”
- http://www.citador.pt/textos/a-morte-nao-e-nada-para-nos-epicuro
A morte deixa seus vestígios na frustração das pessoas, limitando-as
pelo medo ou pela incapacidade em assumir, contundentemente, a própria
identidade. Passa pelo radicalismo de crer sobre o próprio saber e pela
incoerência de não manifestar a devida consciência sobre o conhecimento
adquirido. Morrer, em doses homeopáticas, é aninhar-se ao berço do radicalismo
e da ilusória sensação das verdades absolutas, tornando-se impermeável, as
possibilidades que o novo oferece. É pré-conceber, julgando ao outro e aos
acontecimentos a as volta, como se incorporar-se a um próprio Deus, onipotente
e onipresente às vidas que não lhe pertencem. A morte de cada dia está presente
no ignorar da caridade em detrimento ao isolar-se em prol da estabilidade
temporária. Morrer é acreditar que ama sem a adoção de uma conduta coerente e
livre de qualquer tipo de interesse recíproco. É afundar-se nas próprias
emoções, tornar-se prisioneiro do pensamento e robotizado pelas ações que,
legitimamente, não pertencem ao que se está e o que é. Assim, morrer é
acreditar, veementemente, que é um estado fim, ou, o grande recomeço de tudo.
É comum aos indivíduos adotarem para si, atitudes suicidas e homicidas.
As primeiras ditam sobre os comportamentos que agem contra si mesmos e a
segunda contra os outros, aqueles que os cercam dentro da rotina. Para a
constatação disso, não é preciso ser especialista, basta viver e conviver,
observando as posturas e aquilo que fazem e sentem. E isso que determina o
tempo e o lugar para a morte, ou seja, em qualquer momento e lugar. Viver,
verdadeiramente, está contido naquilo que se é, pela busca constante e
incansável pela coerência entre o que se pensa e o que se faz. É permitir-se
errar, experimentando o caminho para o acerto, afastando-se do que não é
saudável e rumando para a ordem salutar do bem viver privado e coletivo. Enfim,
a vida se resume a um eterno continuar, não há fim e nem recomeço. Tão somente
uma obra inacabada que amplia-se, sem que a necessidade de reformas se faça
presente, sempre, seguidamente, equivocadamente.
Fonte: http://filosmitosritos.wordpress.com/
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