Sexta-feira Santa. A corrente mediúnica se reúne
para falar sobre Jesus e sobre seu Renascimento através da passagem (Páscoa).
Um palestrante irradiado por seu guia espiritual
explanou sobre a vida do Mestre e sobre sua trajetória terrena de forma
iluminada. Depois um pequeno ritual com os elementos e a distribuição de grãos
de uvas imantadas, simbolizando a comunhão entre os irmãos ali presentes.
Uma atmosfera de brandura e paz se fez no
ambiente, podendo-se sentir a presença dos espíritos luzeiros assistindo o
evento, bem como o amparo àqueles que do outro lado, ali estavam buscando
conforto para suas almas. Já era hora de encerrar, quando a médium sentiu as
vibrações fortes de sua protetora e sua necessidade de se fazer presente no
local, através daquela mediunidade. Era a preta velha, Vovó Benta que nos
trazia a bênção de sua presença sempre tão bem vinda:
-Salve os filhos deste terreiro! Negra Velha é
muito “inxirida” e não podia deixar passar essa oportunidade sem lhes dar uma
mensagem. Até porque, o faço a pedido do Sr.Xangô que é o regente oficial desta
casinha de caridade. Primeiramente, em nome dos espíritos que trabalham junto a
vós, agradeço pelo momento de luz que criaram, propiciando auxílio a tantos
quantos nem imagineis. E, com a permissão do Sr. Xangô, essa negra precisa lhes
contar uma pequena história sobre a falta de humildade que já carregou na vida.
-Nos idos tempos da escravidão, este espírito ocupava um corpo físico de formas
perfeitas e o exibia não só entre os negros da senzala que disputavam até um
olhar seu, como também provocava o sinhozinho e seus capatazes brancos. A
sensualidade era sua marca e isso transparecia desde o andar até a maneira de
falar e olhar. A juventude e a beleza de sua pele negra arrecadavam para si,
ciúmes e inveja das outras mulheres.
Um dia, um negrinho foi mordido por cobra venenosa
e por falta de remédios e cuidados de higiene, seu pé apodrecia de infecção.
Eu era a única poupada de trabalhar na lavoura e
sendo assim, me encarregaram de efetuar a higiene do pé do menino e passar o
remédio que as negras haviam feito. Aquilo me anojava muito e me neguei ao trabalho.
Em pouco tempo o menino morreu e então começou meu inferno. Em sonhos, eu o via
chorando e se lamentando de dor e toda a alegria que eu possuía foi se indo
embora.
Um dia, enquanto colhia frutas para sinhazinha,
pisei num espinho venenoso e meu pé infeccionou. Remédio nenhum conseguia
amenizar a dor e o inchaço. Meu remorso aumentava, pois agora mais ainda, eu
sabia o que era padecer sem consolo.
Numa noite, no delírio da febre alta, senti a
presença do menino morto. Ele trazia um pote de água, um pano muito alvo em
suas mãos e largo sorriso no rosto.
Olhei para seus pés e eu não os enxergava, pois o
negrinho flutuava numa névoa translúcida. Chegou-se até meu leito e começou a
lavar meu pé, o que proporcionou alívio imediato. Enquanto fazia isso,
cantarolava um lamento negro que costumávamos ouvir na senzala quando ainda
éramos crianças, cantado pelos negros mais idosos. Ao terminar, o negrinho
ajoelhou-se e beijou minha ferida purulenta, deixando ali sua saliva curativa e
me disse:
-“Bentinha, amanhã suncê vai tá boa. Mas neguinho
vai fazê pedidô: num esquece de rezá pras almas dos nego desamparado e cumeça a
benze”. Me curei da ferida do pé e atendi o pedido daquele espírito.
Comecei a benzer , embora isso não aliviasse minha
culpa por o ter deixado morrer. Carreguei-a além túmulo. Porém, mesmo ajudando
aquele povo, a vaidade que a beleza me dava, obscurecia minha visão e fechava
meus ouvidos. Não havia ainda curado a pior ferida da minha alma: - O Orgulho.
Quando cheguei no mundo dos mortos, me mostraram
uma cena:
-Nosso Senhor Jesus Cristo lavando os pés dos
discípulos na véspera de sua paixão e morte. Por isso meus filhos, longe de me
comparar à figura transcendente de N. Senhor, eu quero neste dia, pedir licença
a todos para lavar vossos pés em frente a este congá. E lavando vossos pés,
quero lavar as feridas que ainda carregais na alma, para aliviar a dor desta
minha ferida. E assim, provocando lágrimas de emoção, Vovó Benta solicitou um
alguidar com água, colocou nele folhas de manjericão e lavou, secou e beijou os
pés de cada médium da corrente.
Como médium consciente, consegui captar do
espírito toda a necessidade que ela ainda trazia, - embora já tendo evoluído e
estando trabalhando nesta egrégora de luz que é a linha dos Pretos Velhos - de
curar sua alma ferida numa encarnação onde não se permitiu salvar uma vida.
Vida essa que veio salvar a sua, demonstrando uma lição ímpar de humildade e
amor incondicional. E me fez repensar naqueles mendigos mal cheirosos que
encontramos nas ruas das cidades e que nos causam repulsa. Em quantos deles não
estarão espíritos que, ou já nos socorreram ou servirão de socorro num futuro
que pode ser amanhã?
O orgulho e a empáfia nos tornam cruéis diante da
vida e dos seres. Aqui, escolhemos a dedo quem merece nosso olhar, nosso
sorriso, nossa atenção, nosso respeito. De certo, da mesma forma, seremos
tratados acolá. Curadores de dores... é o que deveríamos ser. Porém, muito mais
somos nós, julgadores e criadores de marcas, que serão dores a drenarmos num
próximo corpo, se assim tivermos a sorte de tê-lo no futuro.
Paz a todos!
Leni W.S. - Abril/2009.
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