A Gênese, capítilo ll
Deus
Existência de Deus
1. - Sendo Deus a causa primária de
todas as coisas, a origem de tudo o que existe, a base sobre que repousa o
edifício da criação, é também o ponto que importa consideremos antes de tudo.
2. - Constitui princípio elementar que
pelos seus efeitos é que se julga de uma causa, mesmo quando ela se conserve
oculta.
Se, fendendo os ares, um pássaro é
atingido por mortífero grão de chumbo, deduz-se que hábil atirador o alvejou,
ainda que este último não seja visto. Nem sempre, pois, se faz necessário
vejamos uma coisa, para sabermos que ela existe. Em tudo, observando os efeitos
é que se chega ao conhecimento das causas.
3. - Outro princípio igualmente
elementar e que, de tão verdadeiro, passou a axioma é o de que todo efeito
inteligente tem que decorrer de uma causa inteligente.
Se perguntassem qual o construtor de
certo mecanismo engenhoso, que pensaríamos de quem respondesse que ele se fez a
si mesmo? Quando se contempla uma obra-prima da arte ou da indústria, diz-se
que há de tê-la produzido um homem de gênio, porque só uma alta inteligência
poderia concebê-la. Reconhece-se, no entanto, que ela é obra de um homem, por
se verificar que não está acima da capacidade humana; mas, a ninguém acudirá a idéia
de dizer que saiu do cérebro de um idiota ou de um ignorante, nem, ainda menos,
que é trabalho de um animal, ou produto do acaso.
4. - Em toda parte se reconhece a
presença do homem pelas suas obras. A existência dos homens antediluvianos não
se provaria unicamente por meio dos fósseis humanos: provou-a também, e com
muita certeza, a presença, nos terrenos daquela época, de objetos trabalhados
pelos homens. Um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo
bastarão para lhe atestar a presença. Pela grosseria ou perfeição do trabalho,
reconhecer-se-á o grau de inteligência ou de adiantamento dos que o executaram.
Se, pois, achando-vos numa região habitada exclusivamente por selvagens,
descobrirdes uma estátua digna de Fídias, não hesitareis em dizer que, sendo
incapazes de tê-la feito os selvagens, ela é obra de uma inteligência superior
à destes.
5. - Pois bem! lançando o olhar em
torno de si, sobre as obras da Natureza, notando a providência, a sabedoria, a
harmonia que presidem a essas obras, reconhece o observador não haver nenhuma
que não ultrapasse os limites da mais portentosa inteligência humana. Ora,
desde que o homem não as pode produzir, é que elas são produto de uma
inteligência superior à Humanidade, a menos se sustente que há efeitos sem
causa.
6. - A isto opõem alguns o seguinte
raciocínio:
As obras ditas da Natureza são
produzidas por forças materiais que atuam mecanicamente, em virtude das leis de
atração e repulsão; as moléculas dos corpos inertes se agregam e desagregam sob
o império dessas leis. As plantas nascem, brotam, crescem e se multiplicam
sempre da mesma maneira, cada uma na sua espécie, por efeito daquelas mesmas
leis; cada indivíduo se assemelha ao de quem ele provejo; o crescimento, a
floração, a frutificação, a coloração se acham subordinados a causas materiais,
tais como o calor, a eletricidade, a luz, a umidade, etc. O mesmo se dá com os
animais. Os astros se formam pela atração molecular e se movem perpetuamente em
suas órbitas por efeito da gravitação. Essa regularidade mecânica no emprego
das forças naturais não acusa a ação de qualquer inteligência livre. O homem
movimenta o braço quando quer e como quer; aquele, porém, que o movimentasse no
mesmo sentido, desde o nascimento até a morte, seria um autômato. Ora, as
forças orgânicas da Natureza são puramente automáticas.
Tudo isso é verdade; mas, essas forças
são efeitos que hão de ter uma causa e ninguém pretende que elas constituam a
Divindade. Elas são materiais e mecânicas; não são de si mesmas inteligentes, também
isto é verdade; mas, são postas em ação, distribuídas, apropriadas às
necessidades de cada coisa por uma inteligência que não é a dos homens. A
aplicação útil dessas forças é um efeito inteligente, que denota uma causa
inteligente. Um pêndulo se move com automática regularidade e é nessa
regularidade que lhe está o mérito. É toda material a força que o faz mover-se
e nada tem de inteligente. Mas, que seria esse pêndulo, se uma inteligência não
houvesse combinado, calculado, distribuído o emprego daquela força, para
fazê-lo andar com precisão? Do fato de não estar a inteligência no mecanismo do
pêndulo e do de que ninguém a vê, seria racional deduzir-se que ela não existe?
Apreciamo-la pelos seus efeitos.
A existência do relógio atesta a
existência do relojoeiro; a engenhosidade do mecanismo lhe atesta a
inteligência e o saber. Quando um relógio vos dá, no momento preciso, a
indicação de que necessitais, já vos terá vindo à mente dizer: aí está um
relógio bem inteligente?
Outro tanto ocorre com o mecanismo do
Universo: Deus não se mostra, mas se revela pelas suas obras.
7. - A existência de Deus é, pois, uma realidade comprovada não só
pela revelação, como pela evidência material dos fatos. Os povos selvagens
nenhuma revelação tiveram; entretanto, crêem instintivamente na existência de
um poder sobre-humano. Eles vêem coisas que estão acima das possibilidades do
homem e deduzem que essas coisas provêm de um ente superior à Humanidade. Não
demonstram raciocinar com mais lógica do que os que pretendem que tais coisas
se fizeram a si mesmas?
Da Natureza Divina
8. - Não é dado ao homem sondar a
natureza íntima de Deus. Para compreendê-Lo, ainda nos falta o sentido próprio,
que só se adquire por meio da completa depuração do Espírito. Mas, se não pode
penetrar na essência de Deus, o homem, desde que aceite como premissa a sua
existência, pode, pelo raciocínio, chegar a conhecer-lhe os atributos
necessários, porquanto, vendo o que ele absolutamente não pode ser, sem deixar
de ser Deus, deduz daí o que ele deve ser.
Sem o conhecimento dos atributos de
Deus, impossível seria compreender-se a obra da criação. Esse o ponto de
partida de todas as crenças religiosas e é por não se terem reportado a isso,
como ao farol capaz de as orientar, que a maioria das religiões errou em seus
dogmas. As que não atribuíram a Deus a onipotência imaginaram muitos deuses; as
que não lhe atribuíram soberana bondade fizeram dele um Deus cioso, colérico,
parcial e vingativo.
9. - Deus
é a suprema e soberana inteligência. É limitada a inteligência do homem,
pois que não pode fazer, nem compreender tudo o que existe. A de Deus
abrangendo o infinito, tem que ser infinita. Se a supuséssemos limitada num
ponto qualquer, poderíamos conceber outro ser mais inteligente, capaz de
compreender e fazer o que o primeiro não faria e assim por diante, até ao
infinito.
10. - Deus é eterno, isto é, não teve
começo e não terá fim. Se tivesse tido princípio, houvera saído do nada. Ora,
não sendo o nada coisa alguma, coisa nenhuma pode produzir. Ou, então, teria
sido criado por outro ser anterior e, nesse caso, este ser é que seria Deus. Se
lhe supuséssemos um começo ou fim, poderíamos conceber uma entidade existente
antes dele e capaz de lhe sobreviver, e assim por diante, ao infinito.
11. - Deus é imutável. Se estivesse
sujeito a mudanças, nenhuma estabilidade teriam as leis que regem o Universo.
12. - Deus é imaterial, isto é, a sua
natureza difere de tudo o que chamamos matéria. De outro modo, não seria
imutável, pois estaria sujeito ás transformações da matéria.
Deus carece de forma apreciável pelos
nossos sentidos, sem o que seria matéria. Dizemos: a mão de Deus, o olho de
Deus, a boca de Deus, porque o homem, nada mais conhecendo além de si mesmo,
toma a si próprio por termo de comparação para tudo o que não compreende. São
ridículas essas imagens em que Deus é representado pela figura de um ancião de
longas barbas e envolto num manto. Têm o inconveniente de rebaixar o Ente
supremo até às mesquinhas proporções da Humanidade. Daí a lhe emprestarem as
paixões humanas e a fazerem-no um Deus colérico e cioso não vai mais que um
passo.
13. - Deus é onipotente. Se não possuísse o poder supremo, sempre se
poderia conceber uma entidade mais poderosa e assim por diante, até chegar-se
ao ser cuja potencialidade nenhum outro ultrapassasse. Esse então é que seria
Deus.
14. - Deus é soberanamente justo e bom.
A providencial sabedoria das leis divinas se revela nas mais pequeninas coisas,
como nas maiores, não permitindo essa sabedoria que se duvide da sua justiça,
nem da sua bondade.
O fato do ser infinita uma qualidade,
exclui a possibilidade de uma qualidade contrária, porque esta a apoucaria ou
anularia. Um ser infinitamente bom não poderia conter a mais insignificante
parcela de malignidade, nem o ser infinitamente mau conter a mais
insignificante parcela de bondade, do mesmo modo que um objeto não pode ser de
um negro absoluto, com a mais ligeira nuança de branco, nem de um branco
absoluto com a mais pequenina mancha preta.
Deus, pois, não poderia ser
simultaneamente bom e mau, porque então, não possuindo qualquer dessas duas
qualidades no grau supremo, não seria Deus; todas as coisas estariam sujeitas
ao seu capricho e para nenhuma haveria estabilidade. Não poderia ele, por
conseguinte, deixar de ser ou infinitamente bom ou infinitamente mau. Ora, como
suas obras dão testemunho da sua sabedoria, da sua bondade e da sua solicitude,
concluir-se-á que, não podendo ser ao mesmo tempo bom e mau sem deixar de ser
Deus, ele necessariamente tem de ser infinitamente bom.
A soberana bondade implica a soberana
justiça, porquanto, se ele procedesse injustamente ou com parcialidade numa só
circunstância que fosse, ou com relação a uma só de suas criaturas, já não
seria soberanamente justo e, em consequência, já não seria soberanamente bom.
15. - Deus é infinitamente perfeito.
É impossível conceber-se Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não
seria Deus, pois sempre se poderia conceber um ser que possuísse o que lhe
faltasse. Para que nenhum ser possa ultrapassá-lo, faz-se mister que ele seja
infinito em tudo.
Sendo infinitos, os atributos de Deus
não são suscetíveis nem de aumento, nem de diminuição, visto que do contrário
não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se lhe tirassem a qualquer dos
atributos a mais mínima parcela, já não haveria Deus, pois que poderia existir
um ser mais perfeito.
16. - Deus é único. A unicidade de
Deus é consequência do fato de serem infinitas as suas perfeições. Não poderia
existir outro Deus, salvo sob a condição de ser igualmente infinito em todas as
coisas, visto que, se houvesse entre eles a mais ligeira diferença, um seria inferior
ao outro, subordinado ao poder desse outro e, então, não seria Deus. Se
houvesse entre ambos igualdade absoluta, isso eqüivaleria a existir, de toda
eternidade, um mesmo pensamento, uma mesma vontade, um mesmo poder. Confundidos
assim, quanto à identidade, não haveria, em realidade, mais que um único Deus.
Se cada um tivesse atribuições especiais, um não faria o que o outro fizesse;
mas, então, não existiria igualdade perfeita entre eles, pois que nenhum
possuiria a autoridade soberana.
17. - A ignorância do princípio de que
são infinitas as perfeições de Deus foi que gerou o politeísmo, culto adotado
por todos os povos primitivos, que davam o atributo de divindade a todo poder
que lhes parecia acima dos poderes inerentes à Humanidade. Mais tarde, a razão
os levou a reunir essas diversas potências numa só. Depois, à proporção que os
homens foram compreendendo a essência dos atributos divinos, retiraram dos
símbolos, que haviam criado, a crença que implicava a negação desses atributos.
18. - Em resumo, Deus não pode ser
Deus, senão sob a condição de que nenhum outro o ultrapasse, porquanto o ser
que o excedesse no que quer que fosse, ainda que apenas na grossura de um
cabelo, é que seria o verdadeiro Deus. Para que tal não se dê, indispensável se
torna que ele seja infinito em tudo.
É assim que, comprovada pelas suas
obras a existência de Deus, por simples dedução lógica se chega a determinar os
atributos que o caracterizam.
19. - Deus é, pois, a inteligência
suprema e soberana, é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente,
soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições, e não pode ser
diverso disso.
Tal o eixo sobre que repousa o
edifício universal. Esse o farol cujos raios se estendem por sobre o Universo
inteiro, única luz capaz de guiar o homem na pesquisa da verdade. Orientando-se
por essa luz, ele nunca se transviará. Se, portanto, o homem há errado tantas
vezes, é unicamente por não ter seguido o roteiro que lhe estava indicado.
Tal também o critério infalível de
todas as doutrinas filosóficas e religiosas. Para apreciá-las, dispõe o homem
de uma medida rigorosamente exata nos atributos de Deus e pode afirmar a si
mesmo que toda teoria, todo princípio, todo dogma, toda crença, toda prática
que estiver em contradição com um só que seja desses atributos, que tenda não
tanto a anulá-lo, mas simplesmente a diminuí-lo, não pode estar com a verdade.
Em filosofia, em psicologia, em moral,
em religião, só há de verdadeiro o que não se afaste, nem um til, das
qualidades essenciais da Divindade. A
religião perfeita será aquela de cujos artigos de fé nenhum esteja em oposição
àquelas qualidades; aquela cujos dogmas todos suportem a prova dessa
verificação sem nada sofrerem.
A Providência
20. - A providência é a solicitude de
Deus para com as suas criaturas. Ele está em toda parte, tudo vê, a tudo
preside, mesmo às coisas mais mínimas. É nisto que consiste a ação
providencial.
«Como pode Deus, tão grande, tão
poderoso, tão superior a tudo, imiscuir-se em pormenores ínfimos, preocupar-se
com os menores atos e os menores pensamentos de cada indivíduo?» Esta a
interrogação que a si mesmo dirige o incrédulo, concluindo por dizer que,
admitida a existência de Deus, só se pode admitir, quanto à sua ação, que ela
se exerça sobre as leis gerais do Universo; que este funcione de toda a
eternidade em virtude dessas leis, às quais toda criatura se acha submetida na
esfera de suas atividades, sem que haja mister a intervenção incessante da
Providência.
21. - No estado de inferioridade em
que ainda se encontram, só muito dificilmente podem os homens compreender que
Deus seja infinito. Vendo-se limitados e circunscritos, eles o imaginam também
circunscrito e limitado. Imaginando-o circunscrito, figuram-no quais eles são,
à imagem e semelhança deles. Os quadros em que o vemos com traços humanos não
contribuem pouco para entreter esse erro no espírito das massas, que nele
adoram mais a forma que o pensamento. Para a maioria, é ele um soberano
poderoso, sentado num trono inacessível e perdido na imensidade dos céus. Tendo
restritas suas faculdades e percepções, não compreendem que Deus possa e se
digne de intervir diretamente nas pequeninas coisas.
22. - Impotente para compreender a
essência mesma da Divindade, o homem não pode fazer dela mais do que uma idéia
aproximativa, mediante comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que,
ao menos, servem para lhe mostrar a possibilidade daquilo que, à primeira
vista, lhe parece impossível.
Suponhamos um fluido bastante sutil
para penetrar todos os corpos. Sendo ininteligente, esse fluido atua
mecanicamente, por meio tão-só das forças materiais. Se, porém, o supusermos
dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, ele já não
atuará às cegas, mas com discernimento, com vontade e liberdade: verá, ouvirá e
sentirá.
23. - As propriedades do fluido
perispirítico dão-nos disso uma idéia. Ele não é de si mesmo inteligente, pois
que é matéria, mas serve de veículo ao pensamento, às sensações e percepções do
Espírito. Esse fluido não é o pensamento do Espírito; é, porém, o agente e o
intermediário desse pensamento. Sendo quem o transmite, fica, de certo modo,
impregnado do pensamento transmitido. Na impossibilidade em que nos achamos de
o isolar, a nós nos parece que ele, o pensamento, faz corro com o fluido, que
com este se confunde, como sucede com o som e o ar, de maneira que podemos, a
bem dizer, materializá-lo. Assim como dizemos que o ar se torna sonoro,
poderíamos, tomando o efeito Pela causa, dizer que o fluido se torna
inteligente.
24. - Seja ou não assim no que
concerne ao pensamento de Deus, isto é, quer o pensamento de Deus atue
diretamente, quer por intermédio de um fluido, para facilitarmos a compreensão
à nossa inteligência, figuremo-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente
que enche o universo infinito e penetra todas as partes da criação: a Natureza
inteira mergulhada no fluido divino. Ora, em virtude do princípio de que as
partes de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades que ele,
cada átomo desse fluido, se assim nos podemos exprimir, possuindo o pensamento,
isto é, os atributos essenciais da Divindade e estando o mesmo fluido em toda
parte, tudo está submetido à sua ação inteligente, à sua previdência, à sua
solicitude. Nenhum ser haverá, por mais ínfimo que o suponhamos, que não esteja
saturado dele. Achamo-nos então, constantemente, em presença da Divindade;
nenhuma das nossas ações lhe podemos subtrair ao olhar; o nosso pensamento está
em contacto ininterrupto com o seu pensamento, havendo, pois, razão para
dizer-se que Deus vê os mais profundos refolhos do nosso coração. Estamos nele,
como ele está em nós, segundo a palavra do Cristo.
Para estender a sua solicitude a todas
as criaturas, não precisa Deus lançar o olhar do Alto da imensidade. As nossas
preces, para que ele as ouça, não precisam transpor o espaço, nem ser ditas com
voz retumbante, pois que, estando de contínuo ao nosso lado, os nossos
pensamentos repercutem nele. Os nossos pensamentos são como os sons de um sino,
que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente.
25. - Longe de nós a idéia de
materializar a Divindade. A imagem de um fluido inteligente universal
evidentemente não passa de uma comparação apropriada a dar de Deus uma idéia
mais exata do que os quadros que o apresentam debaixo de uma figura humana.
Destina-se ela a fazer compreensível a possibilidade que tem Deus de estar em
toda parte e de se ocupar com todas as coisas.
26. - Temos constantemente sob as
vistas um exemplo que nos permite fazer idéia do modo por que talvez se exerça
a ação de Deus sobre as partes mais intimas de todos os seres e,
conseguintemente, do modo por que lhe chegam as mais sutis impressões de nossa
alma. Esse exemplo tiramo-lo de certa instrução que a tal respeito deu um
Espírito.
27. - «O homem é um pequeno mundo, que
tem como diretor o Espírito e como dirigido o corpo. Nesse universo, o corpo
representará uma criação cujo Deus seria o Espírito. (Compreendei bem que aqui
há uma simples questão de analogia e não de identidade.) Os membros desse
corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os músculos, os nervos, as
articulações são outras tantas individualidades materiais, se assim se pode
dizer, localizadas em pontos especiais do referido corpo. Se bem seja
considerável o número de suas partes constitutivas, de natureza tão variada e
diferente, a ninguém é licito supor que se possam produzir movimentos, ou uma
impressão em qualquer lugar, sem que o Espírito tenha consciência do que
ocorra. Há sensações diversas em muitos lugares simultaneamente? O Espírito as
sente todas, distingue, analisa, assina a cada uma a causa determinante e o
ponto em que se produziu, tudo por meio do fluido perispirítico.
«Análogo fenômeno ocorre entre Deus e
a criação. Deus está em toda parte, na Natureza, como o Espírito está em toda
parte, no corpo. Todos os elementos da criação se acham em relação constante
com ele, como todas as células do corpo humano se acham em contacto imediato
com o ser espiritual. Não há, pois, razão para que fenômenos da mesma ordem não
se produzam de maneira idêntica, num e noutro caso.
«Um membro se agita: o Espírito o
sente; uma criatura pensa: Deus o sabe. Todos os membros estão em movimento, os
diferentes órgãos estão a vibrar; o Espírito ressente todas as manifestações,
as distingue e localiza. As diferentes criações, as diferentes criaturas se
agitam, pensam, agem diversamente: Deus sabe o que se passa e assina a cada um
o que lhe diz respeito.
«Daí se pode igualmente deduzir a
solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre si de todos
os seres de um mundo, a de todos os mundos e, por fim, de todas as criações com
o Criador.» (Quinemant, Sociedade de Paris, 1867.)
28. - Compreendemos o efeito: já é
muito. Do efeito remontamos à causa e julgamos da sua grandeza pela do efeito.
Escapa-nos, porém, a sua essência íntima, como a da causa de uma imensidade de
fenômenos. Conhecemos os efeitos da eletricidade, do calor, da luz, da
gravitação; calculamo-los e, entretanto, ignoramos a natureza íntima do
principio que os produz. Será então racional neguemos o princípio divino, por
que não o compreendemos?
29. - Nada obsta a que se admita, para
o principio da soberana inteligência, um centro de ação, um foco principal a
irradiar incessantemente, inundando o Universo com seus eflúvios, como o Sol
com a sua luz. Mas onde esse foco? É o que ninguém pode dizer. Provavelmente,
não se acha fixado em determinado ponto, como não o está a sua ação, sendo
também provável que percorra constantemente as regiões do espaço sem-fim. Se
simples Espíritos têm o dom da ubiqüidade, em Deus há de ser sem limites essa
faculdade. Enchendo Deus o Universo, poder-se-ia ainda admitir, a título de
hipótese, que esse foco não precisa transportar-se, por se formar em todas as
partes onde a soberana vontade julga conveniente que ele se produza, donde o
poder dizer-se que está em toda parte e em parte nenhuma.
30. - Diante desses problemas insondáveis, cumpre que a nossa
razão se humilhe. Deus existe: disso não poderemos duvidar. É infinitamente
justo e bom: essa a sua essência. A tudo se estende a sua solicitude:
compreendemo-lo. Só o nosso bem, portanto, pode ele querer, donde se segue que
devemos confiar nele: é o essencial. Quanto ao mais, esperemos que nos tenhamos
tornado dignos de o compreender.
A visão de Deus
31. - Se Deus está em toda parte, por
que não o vemos? Vê-lo-emos quando deixarmos a Terra? Tais as perguntas que se
formulam todos os dias.
À primeira é fácil responder. Por
serem limitadas as percepções dos nossos órgãos visuais, elas os tornam inaptos
à visão de certas coisas, mesmo materiais. Alguns fluidos nos fogem totalmente
à visão e aos instrumentos de análise; entretanto, não duvidamos da existência
deles. Vemos os efeitos da peste, mas não vemos o fluido que a transporta (1);
vemos os corpos em movimento sob a influência da força de gravitação, mas não
vemos essa força.
(1) Nota da Editora: Kardec escreveu
de acordo com os conhecimentos da época, antes de 1894.
32. - Os nossos órgãos materiais não
podem perceber as coisas de essência espiritual. Unicamente com a visão
espiritual é que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial.
Somente a nossa alma, portanto, pode ter a percepção de Deus. Dar-se-á que ela
o veja logo após a morte? A esse respeito, só as comunicações de além-túmulo
nos podem instruir. Por elas sabemos que a visão de Deus constitui privilégio
das mais purificadas almas e que bem poucas, ao deixarem o envoltório
terrestre, se encontram no grau de desmaterialização necessária a tal efeito.
Uma comparação vulgar o tornará facilmente compreensível.
33. - Uma pessoa que se ache no fundo
de um vale, envolvido por densa bruma, não vê o Sol. Entretanto, pela luz
difusa, percebe que está fazendo sol. Se entra a subir a montanha, à medida que
for ascendendo, o nevoeiro se irá tornando mais claro, a luz cada vez mais
viva. Contudo, ainda não verá o Sol. Só depois que se haja elevado acima da
camada brumosa e chegado a um ponto onde o ar esteja perfeitamente límpido, ela
o contemplará em todo o seu esplendor.
O mesmo se dá com a alma. O envoltório
perispirítico, conquanto nos seja invisível e impalpável, é, com relação a ela,
verdadeira matéria, ainda grosseira demais para certas percepções. Ele, porém,
se espiritualiza, à proporção que a alma se eleva em moralidade. As
imperfeições da alma são quais camadas nevoentas que lhe obscurecem a visão.
Cada imperfeição de que ela se desfaz é uma mácula a menos; todavia, só depois de
se haver depurado completamente é que goza da plenitude das suas faculdades.
34. - Sendo Deus a essência divina por
excelência, unicamente os Espíritos que atingiram o mais alto grau de
desmaterialização o podem perceber. Pelo fato de não o verem, não se segue que
os Espíritos imperfeitos estejam mais distantes dele do que os outros; esses
Espíritos, como os demais, como todos os seres da Natureza, se encontram
mergulhados no fluido divino, do mesmo modo que nós o estamos na luz. O que há
é que as imperfeições daqueles Espíritos são vapores que os impedem de vê-lo.
Quando o nevoeiro se dissipar, vê-lo-ão resplandecer. Para isso, não lhes é
preciso subir, nem procurá-lo nas profundezas do infinito. Desimpedida a visão
espiritual das belidas que a obscureciam, eles o verão de todo lugar onde se
achem, mesmo da Terra, porquanto Deus esta em toda parte.
35. - O Espírito só se depura com o
tempo, sendo as diversas encarnações o alambique em cujo fundo deixa de cada
vez algumas impurezas. Com o abandonar o seu invólucro corpóreo, os Espíritos
não se despojam instantaneamente de suas imperfeições, razão por que, depois da
morte, não vêem a Deus mais do que o viam quando vivos; mas, à medida que se
depuram, têm dele uma intuição mais clara. Não o vêem, mas compreendem-no
melhor; a luz é menos difusa. Quando, pois, alguns Espíritos dizem que Deus
lhes proíbe respondam a uma dada pergunta não é que Deus lhes apareça, ou
dirija a palavra, para lhes ordenar ou proibir isto ou aquilo, não; eles,
porém, o sentem; recebem os eflúvios do seu pensamento, como nos sucede com
relação aos Espíritos que nos envolvem em seus fluidos, embora não os vejamos.
36. - Nenhum homem, conseguintemente,
pode ver a Deus com os olhos da carne. Se essa graça fosse concedida a alguns,
só o seria no estado de êxtase, quando a alma se acha tão desprendida dos laços
da matéria que torna possível o fato durante a encarnação. Tal privilégio,
aliás, exclusivamente pertenceria a almas de eleição, encarnadas em missão, que
não em expiação. Mas, como os Espíritos da mais elevada categoria refulgem de
ofuscante brilho, pode dar-se que Espíritos menos elevados, encarnados ou
desencarnados, maravilhados com o esplendor de que aqueles se mostram cercados,
suponham estar vendo o próprio Deus. É como quem vê um ministro e o toma pelo
seu soberano.
37. - Sob que aparência se apresenta
Deus aos que se tornaram dignos de vê-lo? Será sob uma forma qualquer? Sob uma
figura humana, ou como um foco de resplendente luz? A linguagem humana é
impotente para dizê-lo, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação
capaz de nos facultar uma idéia de tal coisa. Somos quais cegos de nascença a
quem procurassem inutilmente fazer compreendessem o brilho do Sol. A nossa
linguagem é limitada pelas nossas necessidades e pelo círculo das nossas
idéias; a dos selvagens não poderia descrever as maravilhas da civilização; a
dos povos mais civilizados é extremamente pobre para descrever os esplendores
dos céus, a nossa inteligência muito restrita para os compreender e a nossa
vista, por muito fraca, ficaria deslumbrada.
Fonte:
Portal do Espírito.